quarta-feira, 4 de julho de 2018

Ao filho que nunca vou ter



Filho,

Viver nesse mundo aqui não é nada fácil. Não são poucas as vezes que penso em me despedir dele. Crescer dói. E ser criança também. Não há nada de bom que não venha acompanhado de um tipo de sofrimento ou dor.

Você poderia escolher morar na cidade dos seus sonhos, por exemplo. Mas teria que lidar com a saudade das pessoas que você ama. E olha, esse foi um exemplo fútil!

Eu jamais conseguiria cuidar de você, sem deixar vir à tona todas as experiências que vivi na minha própria infância. Apesar de saber que havia amor, havia muita dor ao redor de mim. E culpa, e raiva, e falta de perdão. E ainda há.

Mas se você existisse, eu jamais poderia ter me distanciado desse cenário. E, certamente, eu teria sido inevitavelmente, contaminada por ele. E teria transmitido isso a você. E teria deixado no mundo, mais uma pessoa contaminada e tóxica e pesada, como eu.

Uma pessoa que não saberia que amar o outro não existe sem amar a si. E talvez, você só descobrisse isso muito tarde, quando dar início ao processo de amar a si mesmo, fosse duro ou complicado demais.

Crescer não é fácil. Exige tomar decisões, escolher um caminho. E mesmo que você tentasse transitar entre caminhos, um dia você precisaria fazer uma escolha. E essa escolha, talvez não fosse a que realmente representasse seu desejo. E sem perceber, todo dia, você estaria se questionando sobre o caminho que decidiu seguir.

E quando você então passasse a se questionar, se não era a hora de mudar a direção, o cansaço, os vícios, a boemia e todas as muletas que você foi colecionando ao longo dessa trajetória, poderiam te fazer sentir incompetente demais para retomar o plano do sonho. E você, muito possivelmente, passaria a questionar o seu próprio sonho.

Aqui, nada é simples. São poucas as pessoas que te amam e querem estar ao seu lado pelo simples fato de você ser quem você é, e do jeito que você é. Durante muitos anos, você tentaria mudar o seu jeito, suas características, sua forma física para tentar agradar a quem você gostaria que estivesse ao seu lado. Depois de alguns anos, você entenderia que mudar a si mesmo por causa do outro é um preço alto demais a se pagar.

Mas pouco tempo depois que você tivesse decidido ser você mesmo [pelo menos a maior parte do tempo] você concluiria que o preço disso talvez fosse ainda mais alto. Nesse caso, apesar de se sentir sozinho quase 70% do tempo, você buscaria afago no fato de estar [tentando ser] sendo honesto consigo mesmo. Mas não seria sempre que essa honestidade te faria querer continuar seguindo o caminho.

Sentir-se sozinho dói. Questionar suas escolhas também. Amar e ser amado é um livro de xaradas que ninguém nunca soube decifrar.

Amigos... você teria encontrado muitos que estariam sempre prontos para te encontrar num bar. Mas muito poucos dispostos a ouvir sobre suas angústias e desconfortos. Ou ainda, dispostos a não ouvir ou falar nada, apenas oferecer afago, abraço, ombro ou colo.

Meu filho, esse mundo aqui é complicado demais para eu permitir que você venha habitá-lo. Talvez você até se desse melhor nele do que eu. Mas se não fosse o caso, eu juntaria a tudo o que já disse nessa carta, à frustração de não ter conseguido fazer com você, diferente do que conseguiram fazer comigo. E acredite em mim: frustração é dor que queima. Falta de amor também!

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