terça-feira, 27 de novembro de 2012

Criancices


Quando eu era criança, eu via a menina dançar. Ela jogava o cabelo e se entregava tanto, que eu ria dela. Mas, em silêncio, sentia vontade de me entregar igual. Jogar o meu cabelo. Mas se eu ria, sabia que ririam de mim. 
Quando eu era criança, tinha o tio, mas não tinha o pai. Tinha a mãe, o avô e a avó. Tinha primos, mas não tinha irmãos. 
Quando eu era criança, eu queria ser adulta, pois acreditava que adultos tinham as respostas para tudo. Até para minhas próprias perguntas.
Acreditava que adultos aprendiam a amar, simplesmente como se aprende a ler. E que o amor viria perfeito e sóbrio, brando e leve, mas com aquele sustinho de quem é atingido por coco de passarinho, quando menos se espera.
Eu achava que a vida de adulto estaria pronta, apenas me esperando para tomar o meu lugar nela. Sem crises, sem dramas.
Mas ainda, quando criança, eu chorava muito e sentia dor. Uma dor que não era como dor de dente ou dor de barriga. Não era dor em nenhum órgão. Era uma dor muito lá dentro. E, embora eu não soubesse exatamente onde ficava a alma, nem qual era a sua forma, eu tinha uma certeza qualquer de que era lá que doía. Mas eu achava que alma sumisse com o tempo. E que quando eu fosse adulta, ela já não existiria mais. E que, então, pararia de doer.
Quando eu era criança, eu experimentei ostra e sorvete de kiwi na praia. Mas caçoaram de mim. Diziam que eu queria ser diferente. E eu me perguntei tantas vezes por que eu não tinha pedido sorvete de chocolate.
Eu não gostava quando as pessoas me acusavam de querer ser diferente. Mas também não entendia por que eu tinha que ser igual. Mas era melhor não perguntar isso em voz alta.
Me satisfazia com a resposta que eu mesma inventei: que talvez a adultice me curasse. Talvez, até ficar adulta, eu já teria aprendido a ser igual, mesmo tendo sido tudo diferente, quando eu era criança.

domingo, 4 de novembro de 2012

Paredes brancas



Em meio a tantas desgraças no mundo: fome, guerra, massacres, doenças, furacões, mortes. Estar a salvo de problemas dessa natureza, ter uma vida ordinária é algo bom. Motivo suficiente para respirar aliviado, dormir em paz e agradecer pela vida que se tem. E quando não é?

Entre todas as possibilidades de estar nessa cidade, sua escolha tem sido simples: um quarto fechado. O seu. No máximo, a sacada para soprar fumaça e olhar a vista. Com uma vida sem muitos problemas, sem grandes emoções, quase roga a Deus, antes de dormir para que algo aconteça. Algo que dê algum sentido a essa languidez. Algo que traga à tona algum sentimento além da indiferença. Da apatia.

Hoje, comeu muito alho, para sentir o gosto de alguma coisa.

Os pensamentos caminham longe e voltam para o quarto branco. Sempre existem desculpas. Você mal consegue sentir. Dormir e acordar todos os dias está longe de ser o sinônimo de viver.

Enquanto isso, o vazio. Um velho amigo. Perguntas, vontades, desejos. Velhos amigos. Nos conhecemos desde que me lembro de ter consciência. Mas antes, tudo era mais latente. Incrível como a vida vai nos levando o visco, a vontade. Aquela intrínseca, verdadeira. E de repente, o tempo nos transforma em criaturas voláteis demais para sentir algo de forma tão, visceral.

As obrigações diárias. O medo de falhar em algum ponto. O desespero de que algo dê errado e fuja do controle. Do próprio controle.

E de repente, amar se torna proibido. Arriscar um palpite também. Se aventurar, nem pensar. Se você parar para analisar a sua linhagem, vai ver que ninguém deu tão certo assim. Você veio de pessoas que simplesmente se adaptaram à sobrevivência. Quem mesmo disse que com você seria diferente?

Se o método Bokanovsky não fosse ficção, você certamente seria um exemplo de falha em algum dos processos de condicionamento. Um Epsilon que pensa demais. Meia falha, eu diria. Porque em meio a tanto pensamento, falta o fator vital. Ação.

Algumas páginas de Bukowski aqui. Alguns episódios de uma das suas séries favoritas ali. Fumaça para esquecer. Ou para lembrar. Lembrar de todo o tempo que perdeu, tentando achar sentido para as coisas. Ligando A com Z como se ao final, chegaria a alguma brilhante conclusão. A razão da sua existência, ou todas aquelas falas que certamente quiseram dizer mais do que  o que de fato foi fito. Bullshit! Sim. Muito tempo perdido assim.

E todas as histórias que você mesmo criou. Tinha o enredo, a fala de todos os personagens. Tudo tão perfeito que possivelmente Woody Allen o invejaria. Perfeito demais para essa coisa blasé chamada vida, a sua vida. Privada de qualquer emoção verdadeira. Simplesmente um dorme-acorda regular. E quando você acorda, nada, além da parede branca e dos seus sonhos sem sentido.

E a vida se esvai.

O tempo te consome e deixa marcas. Daquelas que você só vê quando acende a luz do espelho do banheiro enquanto escova os dentes. O relógio parece sempre marcar tempo demais. E quando cai em si, consegue entender que, na verdade, é tempo de menos o que lhe resta.

“Estou me sentindo tonta. Meus pensamentos parecem rodar a uma velocidade qualquer que eu simplesmente não acompanho. Não me concentro. Viver dói.”

Vazio.

Qualquer coisa é suficientemente desinteressante para lhe tirar a atenção. Concentração no nada. Na parede branca ou na luz acesa do vizinho da frente. No barulho que vem de lugar nenhum. Ou de algum lugar. Aquela tortura agonizante não lhe permite pensar. Pessoas festejam na rua suas alegrias vazias. Seus copos de cerveja amarga. Festejam coletivamente suas vidas medíocres e ordinárias. Transeuntes que passam. Anônimos que gritam, de desejo ou de dor. Em voz alta ou em silêncio. No apartamento ao lado, um último suspiro de prazer.

As luzes se apagam sem beijo de boa noite. Apenas travesseiros e o edredon para te satisfazer essa noite. E mais algumas.

Cedo demais para dormir de novo.

Seus pensamentos não são lineares. Tantos enredos desperdiçados. Tantos diálogos que não foram ditos. Nem serão. Aqueles diálogos só fazem parte da história criada na própria mente. Será tão difícil assim distinguir a vida real da própria ficção? Deve ser.

Pois bem, acenda um cigarro e perceba que é só um cigarro. E que lá fora, a vida teima em existir, com ou sem você.

No telhado, a antena range. O vento sopra, mas ainda assim faz calor. Aquele calor que escalda a alma, ao invés de simplesmente aquecê-la. Que traz ao conforto uma certa sensação de incômodo.

Ainda sentia o gosto do alho. Era tudo o que conseguia sentir naquela noite vazia. De luz acesa, porta da sacada aberta e paredes brancas.