quinta-feira, 18 de outubro de 2018

deus, quem?


Sou filha da dor. De uma dor.
Uma dor sentida por uma mãe que não abortou. Mas o pai sim. Um genitor que não quis saber da cria. Que pediu que ela [a mãe] abortasse, em nome de sua família.
Sua família.
Tenho uma “irmã” que data a mesma idade que eu.
Sou filha de uma dor que, a princípio, não deveria ser minha. Mas trago em mim, a dor sentida pela minha mãe.
Minha mãe não me abortou. Meu “pai” sim. A ele foi dado o direito de escolher não querer ter a filha. Filha eu, que somo na estatística dos mais de 5 milhões de filhos abortados pelos pais nesse país.
Filhos que seguem vivos. Mães que seguem sendo pães.
Houve então um outro homem, que durante todos os anos que esteve com minha mãe, fazia questão de lembrá-la do quão bom era ele, por ter “aceitado” então, essa mulher que já tinha uma filha.
A esse homem, sou grata. Mas minha gratidão não me cega diante das minhas críticas. Nem da dor que senti em todas as brigas, ameaças e agressões – mais verbais, que físicas, é fato – ainda assim, agressões.
Sou branca, privilegiada. Tive uma avó, que estudou até a quarta série, e que talvez por isso, tenha feito o que pôde para me matricular em boas escolas, nas aulas de inglês, de balé, de teatro.
Tive um avô que me alfabetizou em casa, me incentivava à leitura, que nunca ignorou minhas paixões e me fez acreditar que tinha asas. Porque mesmo que o voo doesse, ele sempre deixou claro que o ninho “do vô” estaria sempre pronto à minha espera, caso fosse preciso.
Não foi preciso. Ainda.
Luto com forças que nem sei de onde. E são muitas as vezes, como agora, que as forças me faltam. Me faltam, me sinto vazia, sozinha e amedrontada.
Ao homem que “me fez”, não tenho nem o que dizer, a não ser palavras como abandono e covardia.
Ao segundo, o que me criou, repito que sou grata. Mas ele só não me fez descrer de deus porque em algum momento de minha vida eu consegui entender que o deus pregado por ele, era muito diferente do qual eu acreditava.
Eu, se vem ao caso, acredito em um deus de amor. De tolerância, de compaixão. E não de punições e pragas rogadas. Não de julgamentos e acusações. Acredito, meu senhor, que deus é um cara bacana, que pregou nada menos que o amor. E por mais vazia que me sinta hoje, ainda acredito no amor que podemos sentir uns pelos outros.
E é exatamente por isso que discordo de políticas que sejam feitas a partir desse deus, defensor da moral e da ética controversa. Do deus presente na missa [ou no culto] e ausente no irmão que passa por você na rua.
Desacredito de qualquer bandeira levantada para um deus. Pois acredito que o deus dessa bandeira não é o que prega o amor, mas o ego e a intolerância. É fácil comer hóstia no domingo às 19h e agredir a família, no mesmo domingo, às 21h.
Acredito no amor. E na arte. Entendo que as possibilidades não estão disponíveis para todos. E que é preciso haver coragem para seguirmos vivos. E olha, ainda desconheço a força que faz com que tantos queiram existir nesse mundo mesquinho de julgamentos e privilégios.
Converso com alguns. Ouço suas histórias. Escuto, me comovo, e infelizmente é tudo o que consigo fazer agora. Me dói ser só ouvidos, mesmo tendo ouvido de tantos que isso basta. E por isso, nunca os deixo ir sem um abraço. Um abraço. Ouvidos e abraço: vá em paz. É o que sempre digo.
O Transeuntes, meu projeto eternamente engavetado, nasceu assim. Das histórias que muitos têm para contar e poucos querem ouvir.
Hoje, além do meu próprio vazio, sinto medo. Medo dessas pessoas que dizem ser “pela família”. Desses que bradam “deus acima de tudo”, e que não conseguem diferenciar deus das suas próprias crenças. Dos seus próprios egos.

Um comentário:

Unknown disse...

Lô, estive presente no seu começo. Fui a primeira pessoa a saber da sua existência e ajudei a sua mãe a segurar está barra.
Porém, vim para São Paulo quando vc era ainda muito pequena - em busca de fugir da mediocridade daquela cidade - e vc cresceu sem ter a sua madrinha como referência.
As visitas “relâmpago “ que fazia não ajudaram a criar laços.
Hoje moramos na mesma cidade e nunca nos vemos.
Acredito que nunca seja tarde para começar ou recomeçar uma história.
Vamos sair? Conversar, chorar e tentar recuperar o tempo perdido?
Escrevo isto com lágrimas nos olhos.
Me perdoa por não estar ao seu lado em momentos difíceis.
Bj