De todos os lugares que tinha para escolher, nessa cidade
que tudo tem, escolhi morar aqui, na boca do lixo, às margens da São João.
Aqui, o dia já amanhece com cheiro de merda e pessoas são
confundidas com lixo. Mendigos que se cansaram e adormeceram no meio de sua
busca por um bilhete premiado da loteria, ou por um simples pedaço de pão.
Em frente à Igreja, deuses são vistos dormindo na merda e
comendo comida no chão, enquanto se disfarçam de indigentes à espera que algum
mortal lhes dê alguma dignidade, ou um real para a pinga nossa de cada dia.
Algumas semibeatas, vestidas de minissaia e plataforma,
gastam um real na banca de flores e entram na igreja. Ofertam a rosa a Santo
Antônio e rezam para que algum semirrico olhe para aquelas pernas de pelos
semidescoloridos e grossos de tanta gilete, e sinta qualquer coisa além de,
melhor deixar pra lá.
No meio da rua, não se sabe o que é o quê. Gente, cachorro,
comida, lixo. Todos lutam por um espaço debaixo de uma marquise qualquer e
rogam por mais uma noite, pra que não morram de inanição, ou queimado, tido por
índio.
E quando, de repente, cai a chuva, sorrateira e barulhenta,
sem nem ter dado sinal, alguns se aproveitam para o banho que há tempos não se
toma. Uma penicilina, por favor - ou outra pedra, pra aliviar a dor.
De longe, se escuta o choro do bebê, abafado pelos peitos molhados
e fartos da mãe, que o acolhe implorando perdão por qualquer pecado cruel que
tenha cometido, nessa ou em outra vida, que a faça merecedora de um castigo
como aquele. Dividir a rua com a merda. Dividir o peito com o filho.
Um pouco mais acima, ruas tomadas por zumbis. É possível
sentir o cheiro podre de suas vidas esquecidas e miseráveis. Perambulam como se
estivessem em alguma outra dimensão que não faz sentido algum.
E no meio do lixo, a rua. Várias ruas. Vários prédios.
A arquitetura é o que há de mais belo aqui, quando se tem
coragem de erguer os olhos e olhar para o alto. Toda aquela arquitetura elegante e imponente, devidamente
afundada em merda.
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